quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Crônica do Emb Renato Prado Guimarães



Foca sem foco


A Renata Paro e Waldeck Schützer,
fotógrafos de Colina.


                   Pela primeira vez saíram fotos minhas junto com estas modestas mas persistentes Colinenses (já são 78!). Passáveis as imagens de “Flores nas alturas”, mas muito precárias as da “Flor na calçada”. Acho que retratam minha medíocre sina fotográfica, conforme já admiti e proclamei nas “Crônicas tardias, Memórias precoces”, justamente sob esse título geral aí de cima, “Foca sem Foco”. Minha experiência de texto e imagem não foi propriamente feliz, como verão nos apontamentos a seguir, meio antigos mas ainda inéditos e, acho, a esta altura oportunos.

Lambe-lambe da notícia

Entrei na velha Folha da Manhã (hoje Folha de S. Paulo) na segunda metade da década dos 1950, no primeiro concurso de jornalista que o jornal promoveu (acho que pioneiro em todo o Brasil), por iniciativa do José Nabantino Ramos, dono do jornal e dos maiores inovadores de nossa imprensa no século passado. Como repórter, fazia muita viagem ao interior de São Paulo, do Paraná, de Minas, sempre acompanhado de um fotógrafo da experiente equipe do jornal. Os Pirozelli, da real estirpe (Antonio, o Piro I, que deu até nome de rua em São Paulo, e Ângelo, o Piro II), o Ronaldo Batista, o Gil Passarelli – gente que vinha ainda do tempo da Speedflex, mas nem por isso menos alerta e atual. Artistas da foto, mas também repórteres argutos, com faro inexcedível, capazes de cheirar notícia em cada fato.
O foca (para os que não o saibam, esse simpático animal dá nome ao calouro da notícia) se sentia pouco à vontade entre tão augustos veteranos, sobretudo quando lhe davam uns trotes de iniciação, invariavelmente benignos mas nem por isso menos embaraçosos e irritantes para o iniciante. Com a agravante de que nas provocações havia um quê de desafio a minha condição de filho de Mario Mazzei Guimarães, o respeitadíssimo, mui admirado mas igualmente pra lá de exigente chefe de todos nós, Redator-Chefe do jornal.

Avivava ainda aquele constrangimento um certo sentimento preconceituoso e elitista de superioridade desacatada. Naquele tempo, o texto imperava sobre a imagem, meramente ilustrativa, o repórter era o intelectual, com suas láureas acadêmicas, enquanto o fotógrafo era em geral o proletário autodidata – um artesão subalterno, embora indispensável, na hierarquia da reportagem.

O fotógrafo de jornal era tratado meio como o lambe-lambe da notícia.

Certo dia, não havia fotógrafo disponível para a viagem. Mandaram-me assim mesmo. Resolvi levar comigo uma singela Ciroflex, que havia ganho não sei de quem, imitação americana 6x6, muito barata, da Rollei alemã. E tirei minhas fotos de amador. Na volta, ofereci, junto com o texto, o filme de minha “reportagem” fotográfica, alegando timidamente que talvez pudesse servir, em substituição ao trabalho profissional que na ocasião não havia sido possível. Quem não tem cão... Embora ligeiramente desfocadas, as fotos passaram no crivo da chefia da reportagem e foram publicadas.

Virou praxe. As viagens saíam mais baratas, com o repórter assumindo também as funções do fotógrafo. Tão mais barato era o esquema, que a Direção do jornal se ofereceu para financiar-me a aquisição de uma máquina de verdade, a cobiçadíssima Rolleiflex. Comprei-a numa portinha meio de contrabando, na Rua 7 de abril, objetiva Planar 1:3,5. Passou a ser minha companhia obrigatória nas viagens.

Não custou muito, porém, para eu perceber a besteira que havia feito: a máquina era boa companhia, mas melhor companhia seriam os fotógrafos, cuja experiência tanto me havia ajudado antes, mesmo em minhas funções de texto.


Lambendo o Esso

De repente, ouço rumores alvissareiros: a direção do jornal estaria considerando apresentar matéria minha como candidata ao Prêmio Esso – o galardão máximo de reconhecimento à imprensa na época.

Fiquei excitadíssimo.

Não podendo segurar minha ansiedade, fui ao Chefe da Reportagem (não me lembro ao certo se o Hideo Onaga, àquela altura na Folha da Tarde, ou o Célio Vieira, acho que da Folha da Noite) e perguntei: “Tão dizendo aí que vocês estão pensando em mandar matéria minha pro Prêmio Esso. Não acredito. É verdade?”. Meu interlocutor, certamente condoído ante minha mal disfarçada aflição, respondeu: “Tem gente pensando nisso. Quem sabe?” Animado, e incontido, perguntei mais, plantando verde para colher maduro, como minha vaidade juvenil exigia: “Mas você acha, mesmo, que dá pra tanto? Você acha que meu texto está à altura do prêmio Esso?” Veio aí a resposta desprimorosa, e devastadora: “Que texto, mané texto, sô. Estamos pensando em mandar é as fotos!”

Fiquei magoadíssimo com o rebaixamento inesperado. Eu, o repórter da redação inspirada e ambiciosa, frequentador das vetustas arcadas de nossa Academia, ser apresentado ao Prêmio Esso pela autoria casual de umas fotos menores – como se eu fosse um lambe-lambe dominical da notícia!

Ressentido, não perguntei mais, esqueci o assunto e nem sei o que houve do propalado propósito da candidatura.

Revelação tardia

Hoje em dia, amadurecido, e convencido de que a imagem pode ter mais arte e mérito do que o texto, tento recordar aqueles tempos e reconstituir as circunstâncias em torno do prêmio não pleiteado.

E acho, retrospectivamente, que a tal imagem de que, suponho, haviam cogitado, até que teria merecido candidatar-se ao Prêmio... e ganhá-lo! Posso estar enganado, mas tratava-se de uma foto que tirara, já com a Rollei, numa carreata (mais para caminhão, camionete, jipe e trator do que para carro) da ”Marcha da Produção”, movimento da cafeicultura paranaense que chegou a adquirir tons radicais em favor da eliminação do “confisco cambial” – a diferença entre a taxa de câmbio especial para as exportações do café e as utilizadas para as demais exportações e as importações, sensivelmente mais elevadas.

Ajoelhado na carroceria trepidante de um caminhão, retratei o Bispo de Maringá, D. Jaime Luís Coelho, de pé num jipe que vinha atrás, com os paramentos de sua condição episcopal, abençoando a multidão, solene, os braços abertos para o povo que ladeava a estrada nua e poeirenta do rubro solo norte-paranaense. Bela imagem, em branco e preto, de um prelado brasileiro, do interior, já abertamente envolvido com questões políticas e sociais em 1956 (ou 1957?), antecipando-se a João XXIII e ao Concílio Ecumênico!

Uma foto poderosa, precursora e propiciatória da História por vir, simbólica do futuro.

Outra hipótese que me ocorreu é a de umas fotos de um grupo de retirantes que encontrei, acampado à beira de rodovia na Média Sorocabana. Velhos (muitos), adultos (alguns), crianças (muitas). Perguntei para onde iam; responderam que estavam aguardando condução prometida para Jataí. Não conhecia e perguntei: Onde fica? E aí veio a resposta comovente: “Nóis num sabi...”. Tirei umas fotos daquela gente perdida, de suas redes, de seus bules e panelas fervendo água, dos meninos barrigudos. Deu matéria na Folha da Tarde, se bem me lembro com o título barroco e piegas, mas tocante: “Os que vão para Jataí e não têm destino”. No primeiro posto da estrada, parei e mencionei o grupo ao proprietário, que tampouco sabia onde era Jataí mas me prometeu que iria dar uma olhada no povo a caminho do ignorado. Foi?

A imagem triunfa agora e muitas vezes obscurece o texto na notícia. Cabe quase dizer que este pode ser subalterno daquela - um esclarecimento do que a imagem de per si não deixa de imediato patente. Foi o que disse na apresentação na Feira de Frankfurt, a propósito das fotos de Marcos Villas-Boas em comparação com minhas mal traçadas linhas.

Revelação tardia mas ainda oportuna na câmara escura da vida.

Foco no além

Por tudo isso, continuo a guardar zelosamente minhas câmeras, desde a Ciroflex inaugural até as digitais contemporâneas, embora já começando a passá-las à descendência, em legado antecipado. E passo a experimentar satisfações tardias na arte que na adolescência desprezara. Três anos atrás, minha mulher, médica, levou seus pacientes a participarem da comovente “Race for Cure” (“Corrida pela Cura”) , em Frankfurt. Eu fui como espectador e aproveitei para tirar umas fotos com minha “Lumix” atual. Os pacientes de minha mulher gostaram tanto de sua participação que se reuniram e editaram uma publicação, de muito gosto, com as fotos que eu tirara deles e do generoso evento. Deu-me grande satisfação ler, na contracapa, este crédito trivial: “Fotos de Renato Prado Guimarães”. Tanta satisfação quanto a que tive ao me ler autor-escriba das “Crônicas do Inesperado”.

                      Expoente em meu acervo de velhas máquinas é uma “Leica” ainda da década dos 1950 (ou 1940?), esta sim, legítima, inconteste ganhadora de Prêmio Esso: foi presente de meu pai, também assíduo repórter-fotógrafo, que a usou em sua celebrada série “Um Rio Chamado Chico”, distinguida com o máximo prêmio em 1959. Pena que há muitos anos não funcione, o cilindro da clássica objetiva Summitar 1:2 entortado por alguma queda. Tentei o reparo, mesmo em sua Alemanha natal, sem êxito. Viu muito do mundo nas mãos de meu pai, mas hoje jaz em minha gaveta-museu, cega sem remédio - ou só caolha, quem sabe?

               Talvez devesse devolvê-la ao proprietário original, para assisti-lo no além inelutável, em algum momento ainda remoto (ele só tem 96 anos). Pois “(...) da noite não se tem notícia. E dela, a rigor, não se volta. Com o mergulho nela, ensaiado durante a vida inteira, carrega-se o mundo”; mas mesmo se “na noite se penetra sem consciência transmissível”, nela “pode haver vida que talvez permitisse uma cobertura de truz“ (do eterno jornalista Mario Mazzei Guimarães, em “Notícia do Mundo”, inédito)1.

              Foco no além, objetiva cravada no infinito insondável da dimensão póstuma...




[1]Mario Mazzei Guimarães viria a falecer a 12 de dezembro de 2012, com 98 anos.







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