Foca
sem foco
A
Renata Paro
e Waldeck Schützer,
fotógrafos
de Colina.
Pela
primeira vez saíram fotos minhas junto com estas modestas mas
persistentes Colinenses (já
são 78!). Passáveis
as imagens de “Flores nas alturas”, mas muito precárias as da
“Flor na calçada”. Acho que retratam minha medíocre sina
fotográfica, conforme já admiti e proclamei nas “Crônicas
tardias, Memórias precoces”, justamente sob esse título geral aí
de cima, “Foca sem Foco”. Minha experiência de texto e imagem
não foi propriamente feliz, como verão nos apontamentos a seguir,
meio antigos mas ainda inéditos e, acho, a esta altura oportunos.
Lambe-lambe
da notícia
Entrei na velha Folha da Manhã (hoje Folha de S. Paulo)
na segunda metade da década dos 1950, no primeiro concurso de
jornalista que o jornal promoveu (acho que pioneiro em todo o
Brasil), por iniciativa do José Nabantino Ramos, dono do jornal e
dos maiores inovadores de nossa imprensa no século passado. Como
repórter, fazia muita viagem ao interior de São Paulo, do Paraná,
de Minas, sempre acompanhado de um fotógrafo da experiente equipe do
jornal. Os Pirozelli, da real estirpe (Antonio, o Piro I, que deu até
nome de rua em São Paulo, e Ângelo, o Piro II), o Ronaldo Batista,
o Gil Passarelli – gente que vinha ainda do tempo da Speedflex, mas
nem por isso menos alerta e atual. Artistas da foto, mas também
repórteres argutos, com faro inexcedível, capazes de cheirar
notícia em cada fato.
O foca (para os que não o saibam, esse simpático
animal dá nome ao calouro da notícia) se sentia pouco à vontade
entre tão augustos veteranos, sobretudo quando lhe davam uns trotes
de iniciação, invariavelmente benignos mas nem por isso menos
embaraçosos e irritantes para o iniciante. Com a agravante de que
nas provocações havia um quê de desafio a minha condição de
filho de Mario Mazzei Guimarães, o respeitadíssimo, mui admirado
mas igualmente pra lá de exigente chefe de todos nós,
Redator-Chefe do jornal.
Avivava ainda aquele constrangimento um certo sentimento
preconceituoso e elitista de superioridade desacatada. Naquele tempo,
o texto imperava sobre a imagem, meramente ilustrativa, o repórter
era o intelectual, com suas láureas acadêmicas, enquanto o
fotógrafo era em geral o proletário autodidata – um artesão
subalterno, embora indispensável, na hierarquia da reportagem.
O fotógrafo de jornal era tratado meio como o
lambe-lambe da notícia.
Certo dia, não havia fotógrafo disponível para a
viagem. Mandaram-me assim mesmo. Resolvi levar comigo uma singela
Ciroflex, que havia ganho não sei de quem, imitação americana 6x6,
muito barata, da Rollei alemã. E tirei minhas fotos de amador. Na
volta, ofereci, junto com o texto, o filme de minha “reportagem”
fotográfica, alegando timidamente que talvez pudesse servir, em
substituição ao trabalho profissional que na ocasião não havia
sido possível. Quem não tem cão... Embora ligeiramente
desfocadas, as fotos passaram no crivo da chefia da reportagem e
foram publicadas.
Virou praxe. As viagens saíam mais baratas, com o
repórter assumindo também as funções do fotógrafo. Tão mais
barato era o esquema, que a Direção do jornal se ofereceu para
financiar-me a aquisição de uma máquina de verdade, a
cobiçadíssima Rolleiflex. Comprei-a numa portinha meio de
contrabando, na Rua 7 de abril, objetiva Planar 1:3,5. Passou a ser
minha companhia obrigatória nas viagens.
Não custou muito, porém, para eu perceber a besteira
que havia feito: a máquina era boa companhia, mas melhor companhia
seriam os fotógrafos, cuja experiência tanto me havia ajudado
antes, mesmo em minhas funções de texto.
Lambendo
o Esso
De repente, ouço rumores alvissareiros: a direção do
jornal estaria considerando apresentar matéria minha como candidata
ao Prêmio Esso – o galardão máximo de reconhecimento à imprensa
na época.
Fiquei excitadíssimo.
Não podendo segurar minha ansiedade, fui ao Chefe da
Reportagem (não me lembro ao certo se o Hideo Onaga, àquela altura
na Folha da Tarde, ou o Célio Vieira, acho que da Folha da Noite) e
perguntei: “Tão dizendo aí que vocês estão pensando em mandar
matéria minha pro Prêmio Esso. Não acredito. É verdade?”. Meu
interlocutor, certamente condoído ante minha mal disfarçada
aflição, respondeu: “Tem gente pensando nisso. Quem sabe?”
Animado, e incontido, perguntei mais, plantando verde para colher
maduro, como minha vaidade juvenil exigia: “Mas você acha, mesmo,
que dá pra tanto? Você acha que meu texto está à altura do prêmio
Esso?” Veio aí a resposta desprimorosa, e devastadora: “Que
texto, mané texto, sô. Estamos pensando em mandar é as fotos!”
Fiquei magoadíssimo com o rebaixamento inesperado. Eu,
o repórter da redação inspirada e ambiciosa, frequentador das
vetustas arcadas de nossa Academia, ser apresentado ao Prêmio Esso
pela autoria casual de umas fotos menores – como se eu fosse um
lambe-lambe dominical da notícia!
Ressentido, não perguntei mais, esqueci o assunto e nem
sei o que houve do propalado propósito da candidatura.
Revelação
tardia
Hoje em dia, amadurecido, e convencido de que a imagem
pode ter mais arte e mérito do que o texto, tento recordar aqueles
tempos e reconstituir as circunstâncias em torno do prêmio não
pleiteado.
E acho, retrospectivamente, que a tal imagem de que,
suponho, haviam cogitado, até que teria merecido candidatar-se ao
Prêmio... e ganhá-lo! Posso estar enganado, mas tratava-se de uma
foto que tirara, já com a Rollei, numa carreata (mais para caminhão,
camionete, jipe e trator do que para carro) da ”Marcha da
Produção”, movimento da cafeicultura
paranaense que chegou a adquirir tons radicais em favor da eliminação
do “confisco cambial” – a diferença entre a taxa de câmbio
especial para as exportações do café e as utilizadas para as
demais exportações e as importações, sensivelmente mais elevadas.
Ajoelhado na carroceria trepidante de um caminhão,
retratei o Bispo de Maringá, D. Jaime Luís Coelho, de pé num jipe
que vinha atrás, com os paramentos de sua condição episcopal,
abençoando a multidão, solene, os braços abertos para o povo que
ladeava a estrada nua e poeirenta do rubro solo norte-paranaense.
Bela imagem, em branco e preto, de um prelado brasileiro, do
interior, já abertamente envolvido com questões políticas e
sociais em 1956 (ou 1957?), antecipando-se a João XXIII e ao
Concílio Ecumênico!
Uma foto poderosa, precursora e propiciatória da
História por vir, simbólica do futuro.
Outra hipótese que me ocorreu é a de umas fotos de um
grupo de retirantes que encontrei, acampado à beira de rodovia na
Média Sorocabana. Velhos (muitos), adultos (alguns), crianças
(muitas). Perguntei para onde iam; responderam que estavam aguardando
condução prometida para Jataí. Não conhecia e perguntei: Onde
fica? E aí veio a resposta comovente: “Nóis num sabi...”. Tirei
umas fotos daquela gente perdida, de suas redes, de seus bules e
panelas fervendo água, dos meninos barrigudos. Deu matéria na Folha
da Tarde, se bem me lembro com o título barroco e piegas, mas
tocante: “Os que vão para Jataí e não têm destino”. No
primeiro posto da estrada, parei e mencionei o grupo ao proprietário,
que tampouco sabia onde era Jataí mas me prometeu que iria dar uma
olhada no povo a caminho do ignorado. Foi?
A imagem triunfa agora e muitas vezes obscurece o texto
na notícia. Cabe quase dizer que este pode ser subalterno daquela -
um esclarecimento do que a imagem de per si não deixa de imediato
patente. Foi o que disse na apresentação na Feira de Frankfurt, a
propósito das fotos de Marcos Villas-Boas em comparação com minhas
mal traçadas linhas.
Revelação tardia mas ainda oportuna na câmara escura
da vida.
Foco
no além
Por tudo isso, continuo a guardar zelosamente minhas
câmeras, desde a Ciroflex inaugural até as digitais contemporâneas,
embora já começando a passá-las à descendência, em legado
antecipado. E passo a experimentar satisfações tardias na arte que
na adolescência desprezara. Três anos atrás, minha mulher,
médica, levou seus pacientes a participarem da comovente “Race for
Cure” (“Corrida pela Cura”) , em Frankfurt. Eu fui como
espectador e aproveitei para tirar umas fotos com minha “Lumix”
atual. Os pacientes de minha mulher gostaram tanto de sua
participação que se reuniram e editaram uma publicação, de muito
gosto, com as fotos que eu tirara deles e do generoso evento. Deu-me
grande satisfação ler, na contracapa, este crédito trivial: “Fotos
de Renato Prado Guimarães”. Tanta satisfação quanto a que tive
ao me ler autor-escriba das “Crônicas do Inesperado”.
Expoente em meu acervo de velhas máquinas é
uma “Leica” ainda da década dos 1950 (ou 1940?), esta sim,
legítima, inconteste ganhadora de Prêmio Esso: foi presente de meu
pai, também assíduo repórter-fotógrafo, que a usou em sua
celebrada série “Um Rio Chamado Chico”, distinguida
com o máximo prêmio em 1959. Pena que há
muitos anos não funcione, o cilindro da clássica objetiva Summitar
1:2 entortado por alguma queda. Tentei o reparo, mesmo em sua
Alemanha natal, sem êxito. Viu muito do mundo nas mãos de meu pai,
mas hoje jaz em minha gaveta-museu, cega sem remédio
- ou só caolha, quem sabe?
Talvez devesse devolvê-la ao proprietário
original,
para assisti-lo no além inelutável, em algum momento ainda remoto
(ele só tem 96
anos). Pois “(...) da noite não se tem
notícia. E dela, a rigor, não se volta. Com o mergulho nela,
ensaiado durante a vida inteira, carrega-se o mundo”;
mas mesmo se “na
noite se penetra sem consciência transmissível”,
nela “pode haver vida que talvez permitisse
uma cobertura de truz“ (do eterno
jornalista Mario Mazzei Guimarães, em “Notícia do Mundo”,
inédito)1.
Foco
no além, objetiva cravada no infinito insondável da dimensão
póstuma...
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