quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Colinenses nº 72 - crônica do Emb Renato Prado Guimarães



9 x 7 = 63

A compra era casual e leve. Escolho o produto, cato três pacotes e os levo ao caixa. A moça conta, aplicada, as três unidades, verifica o preço de cada uma - 45 reais. E aí puxa uma máquina de calcular e começa a digitar os números, com cuidado e vagar.  Impaciente, interrompo: “Não precisa! São 135 reais”. Ela não me prestou atenção e concluiu o cálculo na máquina. Mas aí virou para mim, atônita: “Como é que o Senhor sabia?”
“Uma vergonha!”, como proclamou o Ministro-filósofo Renato Janine Ribeiro, da Educação, ao topar com os resultados lamentáveis da última Análise Nacional de Alfabetização: 57 % do terceiro ano não fazem conta, 22% não leem qualquer texto. Sem prejuízo de minha solidariedade plena ao xará e primo, o que me impressionou com mais força, no incidente do caixa, foi a lembrança de cena equivalente (embora oposta)  de um conto escrito em 1957  pelo grande Isaac Asimov, escritor e profeta,um dos fundadores da “science fiction” moderna.
No futuro distante, o homem vive numa sociedade  totalmente automatizada.  O computador concebe, planeja e executa tudo; o homem se acomoda a ponto de esquecer até mesmo a habilidade rudimentar de fazer contas.A Federação Terrestre está em guerra contra Deneb e a guerra é travada por misseis de longo alcance pilotados por computadores caros e difíceis de repor. De resto, evoluindo por conta própria, conforme os mesmos processos lógicos e impulsos operativos, os computadores de um e de  outro lado funcionam igual em terra e no ar,  atacam e defendem na previsão do que o adversário fará, e assim se compensam e neutralizam reciprocamente. Impasse informático perene, incontornável, no longo, dispendioso conflito.
Mas eis que um dia,  numa sala reservada do Novo Pentágono, um modesto técnico de manutenção é submetido a testes para verificar certas habilidades nele casualmente notadas por um Programador  de Primeira Classe.
“Myron Aub, mostre aqui ao general e ao deputado o que você sabe fazer. Por exemplo: quanto são 9 x 7?”. Myron hesita um momento mas responde: “63”.
O general coça a cabeça, cético; como saber se está certo? Na dúvida, tira o computador do  bolso e confere: “63!”, exclama, meio aturdido. Mas, incrédulo ainda, questiona: “Ele deve ter aprendido de cor no computador, é um farsante”.
O Programador de 1ª aumenta a aposta: “Mais do que isso. Aub memorizou  algumas operações e pode computá-las no papel com números de vários dígitos.”. “Um computador de papel?”, pergunta o deputado, mortificado. “Não, só uma folha de papel, com sinais copiados do computador.  Me sugira um número. Dezessete? E o Senhor, general, que número propõe? Vinte-e-três? Aub, multiplique esses números e mostre como o faz”.
O resultado, claro, os leitores já o conseguiram,rabiscando no papel, ou, à socapa, recorrendo ao smartphone. O General e o Deputado tiveram de conferir, pasmos, em seus versáteis computadores, que não erraram: “391”.
Dessa conversa nasceu um empreendimento altamente secreto, o Projeto Número, de descoberta (ou reconstrução) da matemática, da soma à subtração,da multiplicação à divisão, à raiz quadrada, à raiz cúbica, aos logaritmos, etc. etc.
Um dia o general da história, agora convencido e confiante,  se dirige aos participantes do projeto com entusiasmo visionário: “Nosso objetivo é simples, senhores: substituir o computador. Pode ser fantasia, agora, um simples sonho; mas no futuro eu antevejo “the man ned missile”! (o míssil tripulado pelo homem)”. O fator humano seria decisivo para a vitória, ao acrescentar à máquina iniciativa e imprevisibilidade nas operações.  Além de que teria baixo custo (”um homem é muito mais dispensável do que um computador”).
Ao ver que destino passavam a ter os exercícios lúdicos que  começara como mero hobby, Myron Aub se desespera e acaba se matando. O que não impede que o Projeto siga seu curso letal. À beira da cova, o Programador de Primeira Classe não se emociona: Aub já é dispensável, o que começou não tem volta e nos levará um dia aos mísseis tripulados, e a quanta coisa mais? Nove vezes sete são sessenta e três, e eu sei disso sem precisar de um computador! O computador está em minha cabeça! É espantoso o sentimento de poder que isso me dá”.
O mundo dá voltas, no espaço e também no tempo. Quem sabe a moça do caixa tenha razão ao renunciar à capacidade de pensar e calcular. Quem sabe, menos que uma vítima de nosso péssimo sistema de ensino, ela seja uma precursora involuntária de novos tempos. Afinal, há que reconhecer: está acontecendo com todos nós. Eu evito lápis e papel e vou à calculadora quando a conta envolve mais de 3 dígitos. E quem se preocupa em aprender o caminho se o GPS nos leva lá?
Não resisto aqui a citar, de minha Colinense 56, neste mesmo blogue:                    
Sou de outros tempos.
De tempos do passado, sim, mas talvez também do futuro...
                        Retrógrado ou visionário, eu?
Quem quiser entender, que vá ler (ou reler) a crônica 56. E quem chegar lá me faça o favor de ver também a seguinte, na qual tiro com deleite minha “Desforra Informática”.



P.S. – O nome do conto é “O Sentimento do Poder”. Escrito em 1957 (!), quando o computador estava de cueiros, começando a ser algo mais do que uma singela calculadora.  É um clássico da sciencefiction. Quem quiser ler na íntegra, procure na net “The Feeling of Power+ Asimov”; o texto parece já estar em domínio público. Em português, não encontrei.

P.S. 2 - De livro inédito de meu pai, Mario Mazzei Guimarães, a propósito de seu aprendizado de aritmética na escola da Fazenda Mandaguari (Colina/Jaborandi), nos anos 1918 a 1920 :
"Da soma, dona Safira (a professora) passou à subtração, à multiplicação e à divisão, sempre partindo de exemplos acessíveis. E lá vinha a tabuada (...). Ela esclarecia:
- A gente não deve gastar o raciocínio, se a memória pode guardar. 
Uma precursora do computador..."
Intrigante.


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