sexta-feira, 20 de maio de 2011

Colinenses nº 3: Sorvete vs. insulina - crônica do Emb. Renato Prado Guimarães


Sorvete vs. insulina

                   Nas palavras ditas em Frankfurt, no Consulado Geral, dia 8 de maio (Colinenses no. 1), contei diversos episódios marcantes de minhas precursoras a Colina. Por alguma razão omiti o principal, mais saboroso – e talvez o mais significativo.
                   Uma noite quis rever o Cine Santa Helena, cujas matinées frequentei e onde assisti a muito filme de Tarzan e cowboy. Encontrei apenas seus vestígios, escuros, meio tenebrosos. Frustrado e entristecido, pensei em reanimar-me na sorveteria que existia ao lado, descendo a 7, onde tomei muito sorvete de massa e aqueles pirulitos de groselha que deixavam a boca vermelha que nem batom. Encontrei um Banco no lugar. Vislumbro, contudo, do outro lado da rua, uma sorveteria, simpática, embora de aspecto meio modernoso. Vou lá e descubro que o sorvete é de tipo caseiro, e em surpreendente gama de sabores.
                  Depois de alguma hesitação, escolho o “Sonho de Valsa” – outra reverência nostálgica aos tempos de antes. A moça empina uma bola gigantesca em cima da casquinha, e lá vou eu para uma das mesinhas na calçada, ansioso a caminho da juventude reconquistada.
                  Mas aí me invade um sentimento de remorso: não posso ingerir tanto açúcar, do sorvete, sem previamente compensar com uma dose potente de insulina (sou diabético). Tiro a caneta-seringa do bolso, com a mão direita e certa dificuldade, pois com a outra mão segurava o sorvete, tiro a tampa, desajeitado, mas aí a bola instável despenca e se esparrama no chão. Nem deu tempo para lamentar a perda, e pensar no que fazer, e a moça já estava na calçada, pano e escova na mão, para limpar o desastre.
                 Noto então, contudo, que ela vê e mira, atônita, a seringa esquisita em minha mão, agulha em riste, desembainhada. Coro de vergonha e esfrio de preocupação: a caneta injetora é coisa nova, europeia, ela não pode saber que é instrumento médico e vai pensar que é droga! Heroína em Colina! Claro que nem sabe o quê e para quê é insulina. Vai se assustar e chamar o delegado! Cadeia, explicações, talvez advogados, investigações médico-legais. Que começo infeliz, constrangedor, para minha volta à cidade-berço! Angustiado, e muito encabulado, tento justificar, sem muita convicção quanto aos resultados: “É para injetar insulina, tenho diabetes.” E aí vem uma reação inesperada: nem medo, nem acusação, nem questionamento, nem apelo à polícia, mas uma pergunta polida diante de minha patente atrapalhação: ”O Senhor quer que a gente aplique?”
                 Gesto de espontânea solidariedade, revelador de uma hospitalidade genuína e essencial, isenta de reservas e desconfianças.
                 Coisa de Colina!
                 Claro que não aceitei o gentil socorro terapêutico. Pedi foi outro sorvete.
                 Sonho de Valsa, claro.



SOBRE O AUTOR:

Renato Prado Guimarães nasceu em Colina, Estado de São Paulo.
Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad interim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.Promovido a
Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.
No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou.Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.
É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.
Para contatos, usar o endereço de e-mail rpguimar@gmail.com



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3 comentários:

  1. O nome do cinema era "Cine Santa Helena"? O senhor conhece se há alguma história em particular que levou a escolha deste nome? Parabéns pelo blog!

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  2. Adorei o texto, até parece historia em quadrinhos... de tão detalhadas cenas. Parabéns conterrâneo Emb. Renato P. Guimarães, mais vale um gosto do que insulina no bolso...

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  3. Que bom que não acabou esse lado simpático e solidário dos que permanecem nessa cidade carinho.

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