sábado, 17 de outubro de 2015

Colinenses nº 73 - crônica do Emb Renato Prado Guimarães


Flor na calçada


(...)

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor
(...)

É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”


São versos antigos de Carlos Drummond de Andrade, pedaços de sua “A Flor e a Náusea”, também conhecida e apreciada como “Rosa no Asfalto”. A flor brota como esperança ainda difusa ante os totalitarismos doméstico e internacionais dos anos 30/40 do Século passado – reflexo, igualmente, da melancolia lírica e ressentida do incipiente “homem urbano” daqueles tempos.
Em Colina, a flor brota da calçada, furando o duro cimento contemporâneo; cresce também na sarjeta, acomodando-se nas fendas esguias do granito marginal, este pré-histórico, de idade infinita. E não é feia; é bela, em sua singular singeleza.
Alguma mensagem, como no caso da flor anunciadora de Drummond? O homem sempre procura discernir na natureza premonições transcendentes a propósito do que quer e do que teme. Ele caça significados para si nos fenômenos naturais inopinados. Mas aqui não vou de Drummond, mas sim de Fernando Pessoa. A flor está ali só por teimosia, afirmativa – na calçada, na sarjeta, anônima e despretensiosa, vazia de presságios. E nós a admiramos por que é bela e inesperada.
Bela? Mas
Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência, apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão
(...)
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!”1

A flor brota, cresce - e não se vê.
Dificeis de ver, mesmo, essas flores esforçadas e surpreendentes. Talvez porque intrusas, ainda tímidas? Ou meramente porque rasteiras, estão abaixo de nossa mira habitual? Fazem parte de nosso cotidiano, são óbvias em nossos caminhos, mas quem repara nelas? Eu só reparei agora, a da calçada, e num só ponto: av. Palomino Fernandes, quadra adjacente ao Recinto, lado de quem desce, quase chegando na José Marques de Oliveira. Nem sei que nome tem; vou perguntar ao Rubinho, meu consultor paisagístico (v. “Artes – Rubinho, jardineiro-artesão...”, neste mesmo blogue).
Sem querer concorrer com a Renata Paro, imbatível, aí vão umas fotos das flores sub-reptícias.
Tudo isso para justificar o mote atrevido destas crônicas, adotado nas origens: “a Colina que você conhece mas não vê”. Nesse “você”, claro, hoje cabe incluir-me eu próprio, que também vi tarde a florzinha resoluta, embora patente nos caminhos do meu cotidiano. . Resignado em minha desatenção ocasional, só me conforta aquela frase cheia de sabedoria e provocação do Millor: ”Nada mais difícil de ver que o óbvio”.


1 Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), “O Guardador de Rebanhos”.






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