Flor na calçada
“(...)
Uma
flor nasceu na rua!
Passem
de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma
flor ainda desbotada
ilude
a polícia, rompe o asfalto.
Façam
completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto
que uma flor nasceu.
Sua
cor não se percebe.
Suas
pétalas não se abrem.
Seu
nome não está nos livros.
É
feia. Mas é realmente uma flor
(...)
É
feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
São
versos antigos de Carlos Drummond de Andrade, pedaços de sua “A
Flor e a Náusea”, também conhecida e apreciada como “Rosa no
Asfalto”. A flor brota como esperança ainda difusa ante os
totalitarismos doméstico e internacionais dos anos 30/40 do Século
passado – reflexo, igualmente, da melancolia lírica e ressentida
do incipiente “homem urbano” daqueles tempos.
Em
Colina, a flor brota da calçada, furando o duro cimento
contemporâneo; cresce também na sarjeta, acomodando-se nas
fendas esguias do granito marginal, este pré-histórico, de idade
infinita. E não é feia; é bela, em sua singular singeleza.
Alguma
mensagem, como no caso da flor anunciadora de Drummond? O homem
sempre procura discernir na natureza premonições transcendentes a
propósito do que quer e do que teme. Ele caça significados para si
nos fenômenos naturais inopinados. Mas aqui não vou de Drummond,
mas sim de Fernando Pessoa. A flor está ali só por teimosia,
afirmativa – na calçada, na sarjeta, anônima e despretensiosa,
vazia de presságios. E nós a admiramos por que é bela e
inesperada.
Bela?
Mas
“Uma flor acaso tem beleza?
Tem beleza acaso um fruto?
Não: têm cor e forma
E existência, apenas.
A beleza é o nome de qualquer coisa que não existe
Que eu dou às cousas em troca do agrado que me dão
(...)
Que difícil ser próprio e não ver senão o visível!”1
A
flor brota, cresce - e não se vê.
Dificeis
de ver, mesmo, essas flores esforçadas e surpreendentes. Talvez
porque intrusas, ainda tímidas? Ou meramente porque rasteiras,
estão abaixo de nossa mira habitual? Fazem parte de nosso cotidiano,
são óbvias em nossos caminhos, mas quem repara nelas? Eu só
reparei agora, a da calçada, e num só ponto: av. Palomino
Fernandes, quadra adjacente ao Recinto, lado de quem desce, quase
chegando na José Marques de Oliveira. Nem sei que nome tem; vou
perguntar ao Rubinho, meu consultor paisagístico (v. “Artes –
Rubinho, jardineiro-artesão...”, neste mesmo blogue).
Sem
querer concorrer com a Renata Paro, imbatível, aí vão umas fotos
das flores sub-reptícias.
Tudo
isso para justificar o mote atrevido destas crônicas, adotado nas
origens: “a Colina que você conhece mas não vê”. Nesse “você”,
claro, hoje cabe incluir-me eu próprio, que também vi tarde a
florzinha resoluta, embora patente nos caminhos do meu cotidiano. .
Resignado em minha desatenção ocasional, só me conforta aquela
frase cheia de sabedoria e provocação do Millor: ”Nada mais
difícil de ver que o óbvio”.
1
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro), “O Guardador de Rebanhos”.
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