Vãs esperanças
De meu blogue em Frankfurt, postada em fevereiro de 2012:
“Estórias verdadeiras, lições de civismo para todos nós, brasileiros:
O letreiro na estrada avisava: ponte interrompida, na entrada da cidade, congestionamento à frente. Resolvi tentar um caminho de contorno. Deu certo, até um certo ponto. De repente, me sinto perdido. Não sabia onde estava, que rumo tomar para chegar a meu destino. Noitinha, já. Pergunto num posto de gasolina, me dão uma indicação vaga, de direção. Lá vou eu. O bairro era desconhecido, e deveras amedrontador, sobretudo no escuro da noite que se impunha. Quinze minutos na direção recomendada, e nada de encontrar a avenida desejada. Num semáforo, ouso baixar o vidro da janela e acenar para um carro parado ao lado, à esquerda, janela também cerrada. O motorista nota meu sinal e se estica do volante sobre o banco do passageiro, abre seu vidro direito e ouve minha pergunta angustiada: nesse rumo, vou dar na avenida X? Ele pergunta, em resposta: Mas para onde o Senhor quer ir? Respondo que para o bairro Y. Ele hesita um momento e de súbito me diz, resoluto: Me segue! Corta à minha frente para mudar seu próprio rumo, e vai em frente, à direita. Segui, relutante e preocupado, avaliando riscos, lembrando assaltos, mas fui em frente. Afinal, estava sozinho, sem ninguém mais com quem preocupar-me, no carro. Acompanhei meu guia por uns dez minutos, dobrando esquinas, cruzando avenidas, esperando sinais. De repente, numa rua arborizada, deserta e escura, ele para o carro, abre a porta e vem em minha direção. Paro também. Permaneço no carro, guento firme mas abro o vidro. Ele diz: O Senhor agora dobra na próxima à direita, direita de novo e outra vez à direita. Aí o Senhor cai na avenida que leva ao túnel que passa aqui por baixo. No fim do túnel, o Senhor estará no começo do bairro Y. Confirmo as três direitas e agradeço. Ele responde, com naturalidade, já se movendo para seu carro, quinze metros adiante: De nada, sempre às ordens!
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O Volks à frente brecou de repente. Quase bati. Até estercei para a direita, para ganhar espaço e evitar o choque. Não entendi a brecada súbita, completamente de surpresa, para mim. Ia reclamar, mão já na buzina, mas aí noto que uma Senhora estava começando a cruzar a faixa, adiante do Volks, e fora a razão para a freada inesperada. Dei-me conta de que o culpado era eu, que não havia atentado para a transeunte e me prevenido em tempo para a brecada na frente. Engoli o xingamento e acabei acompanhando com deleite a amistosa troca de sinais entre o motorista e a pedestre, esta agradecendo com um sorriso e um aceno jovial, ele respondendo com aquele prazer comunicativo que acompanha os gestos de boa-vontade. Percebi depois como esse diálogo feliz e reconfortante se repetia em todo cruzamento, choferes e pedestres encantados de poder ceder e usar a passagem segura, bem como de se agradecerem alegremente, em mútuo e afetuoso reconhecimento.
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A rua era íngreme e a calçada era “em comporta”, intercalada de degraus que a dividiam em patamares, para facilitar a subida e a descida. Perco um degrau, dou um passo em falso e despenco. Nem tenho desculpas: o degrau estava perfeitamente assinalado, com um amarelo tão nítido que parecia recém-pintado. Pura distração. Vou a meio caminho da queda, preocupado com o choque que virá, e já vislumbro dois vultos à distância, disparando para ajudar-me. Caio bem (dizem que eu sei cair bem; lições da vida). Ia começando a levantar e o socorro já estava a meu lado; devem ter, os dois, estabelecido novo recorde para os cem metros com obstáculos – os degraus. Seguram-me no chão, com enérgica gentileza, não deixam que me mova. Perguntam pelo braço, pelo joelho, pelo pescoço, pela cabeça. Sentindo alguma coisa? Tontura, mal-estar? Mexe o cotovelo, devagar, estende o joelho, com cuidado! Tento me livrar da ajuda, vexatória para o caído, e mostrar que sou forte e estou bem e inteiro – como sucede sempre nas quedas. Acabam deixando que me levante, ajudando-me com vigor no movimento. Um deles vai buscar um banco que vê uns metros adiante. Sente-se aqui, para descansar, recuperar-se. O outro recolhe óculos, chaves, iPhone, espalhados pelo chão. Custou bem uns três minutos livrar-me do socorro inesperado e constrangedor. Agradeci, impressionado com tanta solicitude e civilidade. De nada, sempre às ordens, foi a resposta, singela, natural.
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De pé, faço aquele gesto automático de limpar a roupa depois da queda. Olho em volta, para checar a sujeira do chão, e não vejo nenhuma. Estendo o ângulo do olhar, foco os olhos mais longe, e não enxergo sujeira. Percebo então como estava tudo bem limpo, minha roupa incólume. A partir daí, fui testando em toda parte: admirável, surpreendente, mesmo, a limpeza geral, naquela parte da cidade, classe média baixa. Chequei no centro antigo, também, a mesma coisa. Nada de ponta de cigarro, papel de bala, palito de sorvete, nem falar em lixo abandonado.
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Entro no taxi, afobado. Dou o endereço de destino. O motorista se vira: O Senhor pode fazer o favor de usar o cinto? Tão polido que me havia dado bem uns vinte metros de trajeto, paciente, à espera de que eu me dignasse a observar a norma de segurança. Mas a gentileza não ficou nisso. Foi eu acabar de amarrar o cinto e ele arrematar: Muito obrigado, !
Isso tudo na Alemanha, onde morava?
Não, tudo isso em São Paulo, minha terra!
Que alegria, que cívico orgulho!
Tá melhorando, gente!”
Renato Prado Guimarães nasceu em Colina, Estado de São Paulo.
Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad interim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.Promovido a
Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.
No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou.Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.
É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.
Para contatos, usar o endereço de e-mail rpguimar@gmail.comAberto às suas opiniões, sugestões, etc...
para saber mais sobre o autor, por favor, acesse os links:
http://colinaspaulo.blogspot.com.br/2012/04/renato-prato-guimaraes-autor-colinense.html
ou seu blog: http://www.ccbf.info/blog
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