Muros transcendentes?
Há que voltar ao mural – à série sobre os muros de Colina (Colinenses no. 10: Muros de Colina; Colinenses no. 11: Festa na rua; Colinenses no. 15: Muros altos, ruas largas).
Existem coisas quase que insensivelmente simbólicas de atitudes sociais – ou anti-sociais. Eu tenho uma bela gravura da Maria Bonomi, imensa e com formato que lembra uma flecha. A Maria me disse que poderia pendurá-la no sentido que quisesse. Mas logo percebi que a flecha não poderia apontar 1) para baixo (parecia mandar o visitante para debaixo da terra, um “vá pro inferno” gráfico), nem 2) para fora do ambiente, da casa (parecia mandar o espectador embora, um “mande-se daqui” cabal). Acabei colocando dirigida para o alto, encaminhando os visitantes para os céus... E céus brasileiros, pois a peça é toda em verde e amarelo.
Mas me custou perceber tudo isso. Tanto quanto penetrar na psicologia das portas de Montevidéu, quando lá estive. De livro em rascunho (“Crônicas Tardias, Memórias Precoces”), não resisto a antecipar esta crônica, como introdução (ou provocação) ao debate sobre os muros de Colina:
“Montevidéu deveria, toda, ser tombada,
como um monumento urbano global,
testemunha de uma era de prosperidade
esclarecida, na arquitetura, nas artes, na
cultura. Não sei como estará agora, pois já lá
vão 15 anos que não a visito. Gostaria mesmo
é que fosse tombada tal como era no meu
tempo...
Com seus quarteirões inteiros de casas
antigas, antigas lojas e armazéns, ainda
decorados como se estivéssemos cem anos
atrás. Com suas belas portas, dando
diretamente sobre a calçada, de uma
imponência cativante, elegantes, altas,
largas,
abrindo em duas folhas, em madeira espessa e
desenhada, caprichosamente trabalhada em
sinuosidades art-nouveau, vidros foscos,
discretos.
Sempre achei que as portas de Montevidéu
escondiam uma mensagem, abrigavam
mistérios, sugeriam como a passagem não só
para outros espaços, mais além, mas também
para outros tempos, insondáveis.
As portas de Montevidéu tinham até seu
pintor, Enrique Medina, que as reproduzia
fielmente, em preto e branco, em minúcia
quase fotográfica, como nosso João Paulo
Moreira da Fonseca fazia, em cores
elaboradas, com as portas fluminenses.
Gostava muito das portas do Medina, retratos
esmerados das portas reais que tanto
apreciava nas ruas da cidade; mas havia
sempre algo a qualificar minha satisfação
estética, uma ressalva interior, estranha, que
me impedia de apreciá-las como talvez
merecessem. E eu não conseguia atinar por
quê.
No centro de Montevidéu havia um
restaurante,
muito bem localizado e montado, mas
financeiramente um eterno malogro. Diversos
donos se sucederam no espaço, e todos
fracassaram. Eu próprio lá fui um par de vezes,
mas sempre me senti meio incomodado, pouco à
vontade. Reclamava um amigo uruguaio: “A
comida é boa, o serviço é ótimo, o ambiente é
agradável, a decoração é de bom gosto. Tem na
parede até aquela porta enorme do Medina, em
tamanho natural. Por que não dá certo?”.
Veio-me a inspiração, súbita, de estalo,
inesperada: “É por causa da porta do Medina!”.
E tive que explicar o que só naquele momento
percebera: a imensa porta do Medina,
entreaberta, abria para fora!
Por mais agradável, e “cozy”, o ambiente, a
porta incomodava a freguesia, como que a
convidava a sair, a ir embora. Não era um
incentivo a desfrutar do bom ambiente, da boa
comida, do bom vinho; pelo contrário, era uma
perene e poderosa sugestão de retirada. A tese,
decerto audaciosa, causou espanto, mas não
houve quem a contestasse, ao menos de
imediato.
Talvez por absurda, improcedente? Nem sei se
tiraram o Medina inóspito do restaurante, nem
do destino deste nas mãos do novo proprietário,
um brasileiro, gaúcho, que fora gerente da
agência do Banco do Brasil na Capital uruguaia.
Seus filhos tomavam conta.
Ao deixar o Uruguai, amigos me deram uma tela
de Medina, uma de suas indefectíveis portas, e
das que abrem de dentro para fora. Em minhas
paredes, na Austrália, no Brasil, em Frankfurt,
em Tóquio, todos apreciavam a técnica, a
qualidade da pintura, a beleza da peça
retratada, o jogo de luzes e sombras em preto e
branco, mas poucos eram os que realmente se
entusiasmavam. Talvez por pouco hospitaleira,
como no restaurante?
Mas as portas de Montevidéu são bonitas,
abertas ou fechadas, afora ou adentro,
recebendo ou despedindo, em pintura ou ao vivo –
não importa. E são portas também espirituais,
que transcendem.
Bem que eu gostaria de abrir minha porta do
Medina e por ela sair de volta à Montevidéu do
meu tempo.”
Quê que têm a portas de Montevidéu com os muros de Colina?
Sei lá! Ou os muros de Colina são também transcendentes?
Renato Prado Guimarães nasceu em Colina, Estado de São Paulo.Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad ínterim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.Promovido a Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou.Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.
É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.
Para contatos, usar o endereço de e-mail rpguimar@gmail.com
Aberto às suas opiniões, sugestões, etc...
para saber mais sobre o autor, por favor, acesse os links:
http://colinaspaulo.blogspot.com.br/2012/04/renato-prato-guimaraes-autor-colinense.html
ou seu blog:
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