sexta-feira, 20 de maio de 2011

Colinenses nº 43 - Fantasias criminosas - Crônica do Embaixador Renato Prado Guimarães



Fantasias criminosas

                     Arthur Nestrovski, Diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, teve a feliz ideia de todo ano encomendar a um compositor brasileiro uma fantasia em torno de nosso Hino, a fim de apresentá-la na abertura de cada temporada de concertos, em lugar do solene, batido e às vezes enfadonho Hino oficial de Francisco Manuel da Silva.  Ouvi a peça encomendada à surpreendente  Clarice Assad na abertura de  março de 2.012, regida pela nova Maestrina da OSESP, Marin Alsop. Nada no formato sinfônico e triunfante  da Grande Fantasia de Gottschalk, algo mais brasileiro, com abundante uso de instrumentos nossos (até berimbau vi no palco), acordes quase íntimos de nossa música e cultura, menos fantasia de sonoridades gongóricas do que a descrição traquinas, bem-humorada, de passagens expressivas de nossa formação como País. Cinco minutos de encantamento e deleite, bela alegoria que torço para ouvir logo também em disco. Junto, claro, com as demais fantasias anuais,  anteriores.
                   Afinal, são  todas provas materiais do crime.
                   Pois não é que há bem poucos anos a boa ideia de Nestrovski poderia ter dado cadeia, mudando-o dos aprazíveis recintos da Sala São Paulo para aquele fidalgo prédio ali vizinho, abrigo, à época,  do nada aprazível e ainda menos nobre DOI-CODI? Ele promove, com reincidência anual e premeditada, a corrupção pública e deletéria de valores pátrios, um símbolo nacional cristalizado em lei pelo Estado – por isso mesmo imutável e sob atenta guarda fardada. Por muito menos um corrupião patriota foi censurado – seus trinados com as notas inaugurais do Hino foram proibidos, só mesmo uma gentileza especial do Ministro da Guerra tornou possível o registro em disco de seu cantar inusitado. Ademais, a própria Grande Fantasia do Gottschalk era meio clandestina na República, só a intocável Guiomar Novaes recalcitrava em tocá-la às claras, civicamente, ao final de seus concertos. (Essas estórias do Hino de Guiomar e  do canoro passarinho, eu as conto nas “Crônicas do Inesperado”, livro que pode ser encomendado nas  boas livrarias mas que também já se encontra prontamente disponível em todo sebo de bom sortimento).
                   Ainda em tom de merchandising, a quem tiver o privilégio de comprar (comprem!) o CD com as deslumbrantes “Danças Brasileiras” na execução da OSESP, sob a regência de Roberto Minczuk, edição da BIS, o prestigioso selo sueco, recomendo que não deixe de ler o libreto de apresentação, e, neste, o micro-ensaio sobre a identidade musical brasileira escrito por Cacá Machado. Revelador e divertido, pondo Darius Milhaud e Mario de Andrade lado a lado, aquele falando do “petit rien” intrigante de nossos ritmos (“uma imperceptível suspensão, uma respiração displicente, uma pequena parada que me era muito difícil captar”), Mario denunciando “um não-sei-quê vago mas geral que é uma primeira fatalidade da raça badalando longe” - singularidade bastante “prá gente adquirir agora já o critério legítimo de música nacional que deve ter uma nacionalidade evolutiva e livre”.  (Não percam as danças, e o libreto - música e letra! Na lojinha da Sala São Paulo tem).
                    Ainda na busca de raízes musicais genuínas, Cacá Machado  lembra também a queixa célebre de Tobias Barreto, já em 1887, do Brasil “um Estado mas não uma Nação”. De nada custa, e muito vale, citá-la, pois calha para o Hino original, formal e oficial, em contraste com suas variantes:  “Entre nós, o que há de organizado é o Estado, não é a Nação; é o governo, é a administração, por seus altos funcionários na corte, por seus sub-rogados nas províncias, por seus ínfimos caudatários nos municípios; não é o povo, o qual permanece amorfo e dissolvido, sem outro liame entre si, a não ser a comunhão da língua, dos maus costumes e do servilismo”.
                  Nossos símbolos pátrios foram outorgados pelo Estado, bem como o respectivo culto por ele cobrado, zelosamente, à revelia da Nação, ou sem que esta sequer se desse conta, talvez, justamente, porque não existisse como tal.  Como se símbolo se fizesse por encomenda... Ele se forja é nos campos de batalha ou na também dura luta cotidiana do povo, em seu afã de sobrevivência e progresso.  Mas a Nação se ergue agora, despoja-se do servilismo denunciado por Tobias e vai conquistando ao Estado aqueles símbolos, assumindo-os com valentia e a seu gosto, autônomo e espontâneo, sobretudo depois das “Diretas já”.
                     Vejam o que aconteceu com a bandeira, que hoje é usada sem os vigilantes protocolos de antigamente, e até como roupa, sunga e biquini.  O Hino, a Nação já o havia abraçado como seu quando a República abriu concurso para substituí-lo e pela voz dos cariocas o país cobrou a permanência da versão antiga, embora Imperial e politicamente incorreta nos novos tempos, ensejando o famoso “Prefiro o velho” do Marechal Deodoro. A música ganhou legitimidade nacional, mas nem por isso ficou  menos sujeita à vigilância autocrática. Foi preciso um século para livrar-se das peias do Estado e passar a ser interpretada e trabalhada ao gosto necessariamente mutável da Nação, titular soberana de “uma nacionalidade evolutiva e livre”, como queria Mario de Andrade – aquele mesmo do Macunaíma, herói liberto e irrequieto, ele sim um símbolo do País-nação (embora venezuelano!; veja nas “Crônicas do Inesperado”).
                     A Nação dobra o Estado, o costume submete a Lei.
                     Arthur Nestrovski acaba dando uma boa mão nessa direção libertadora de atávicos encilhamentos, e afirmadora de uma identidade musical genuína na Nação que se vai formando, revelando e impondo, perante o Estado e nós próprios - poderosa, irrevogável.



SOBRE O AUTOR:

Renato Prado Guimarães nasceu em Colina, Estado de São Paulo.
Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad interim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.Promovido a
Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.
No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou.Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.

É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.


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