sexta-feira, 20 de maio de 2011

Colinenses nº 48 - Marceneiro amoroso - crônica do Emb. Renato Prado Guimarães



Marceneiro amoroso

Comprei a mesa num antiquário em Caracas. Nem estava em exposição; vi-a em cima de um monte de móveis velhos no quintal da casa, ao ar livre, sob sol e chuva. Os pés eram estranhos; perguntei e me explicaram que eram cangas de carro de boi, improvisadas  para servir de suporte ao tampo, de madeira maciça e bruta, toscamente trabalhada, uns 15 cm de espessura. Idade? Impossível determinar. Século XIX ou, mesmo, XVIII; de qualquer maneira, era provavelmente uma peça pré-bolivariana. Comprei-a, dei-lhe uma limpeza sumária e a pus no lugar mais nobre da Embaixada brasileira.



Passou a ser objeto de avaliação admirada de meus convidados venezuelanos, que discordavam com respeito a sua origem e idade, mas concordavam, unânimes, em que era um belo móvel, embora com uma carga histórica indecifrável.



Surpresa no 7 de setembro. Embora sempre convidado, o Presidente da República, por tradição de décadas, só ia às festas nacionais da Espanha (la madre patria),  da Colômbia  (o histórico aliado e/ou rival) e dos EUA (pour cause). Esse ano ele anuncia que viria também à festa brasileira. Sinal de que o Brasil crescia de importância na política externa venezuelana? Acredito que sim – e assim o interpretaram, satisfeitos, meus chefes em Brasília. Mas entre nós devo admitir que sempre achei que  a presença presidencial se devia um pouco também à mesa, da qual o Chefe de Estado havia decerto ouvido falar.



Ele veio em nutrida comitiva, diversos Ministros o acompanhando. Encantado com tão ilustre presença, que valorizava o Brasil e o desempenho profissional de seu Embaixador,  mostro-lhe a casa, demoro-me junto a um esplêndido e raro Reverón (pintor-símbolo venezuelano) que a Embaixada recebera com o imóvel, décadas atrás, e fazia inveja na cidade, sobretudo nas demais Embaixadas. Claro, exibo igualmente, com orgulho, a mesa magnífica.  Ele contempla a peça, posiciona-se para vê-la de cada lado, acho até que empurramos um pouco, para que visse também por trás. Murmurou umas palavras banais de elogio, felicitou-me pelo achado e foi só.



Dias depois, contudo, recebi o recado, pela boca do Ministro das Relações Exteriores, meu amigo Simón Alberto Consalvi – um alerta informal e  amistoso. Se você pensa em levar essa mesa da Venezuela, saiba que nós queremos que ela fique aqui. Mera expressão de vontade, ou ameaça de retenção do móvel,  virado patrimônio nacional, graças a minha casual descoberta? Sei lá. Anotei a advertência mas não me inquietei muito; muita água haveria ainda de correr antes que preparasse as malas de partida de Caracas, à  qual havia há tão pouco chegado.



Fiquei cinco anos, intensos, na Venezuela, muita daquela água passou debaixo da ponte, às vezes até meio turbulenta, embora sempre cálida e solidária. Ao cabo desse tempo, a mesa já fora esquecida, eu próprio já nem lembrava do aviso de Consalvi. Deixei o país com todos meus trastes, incluída a mesa, que me acompanhou 1) ao Uruguai, onde pus-lhe em cima  um ornamento também da Venezuela, moderno e  intrigante objeto metálico que articulava engrenagens verdadeiras, pintadas em azul e negro, trabalho do Victor Valera, escultor  cuja obra pontilha muitos monumentos no País (há um, gigantesco, celebrando a inauguração de Guri, a grande hidrelétrica em Puerto Ordaz, sobre o Orinoco).



De Montevidéu a mesa 2) viajou para a Austrália, 3) retornou ao Brasil (São Paulo, onde substituí a peça de Valera por um trabalho em vermelho e negro do Emannuel Araújo), 4) prosseguiu em seguida a Frankfurt, na Alemanha, e 5) mais tarde, a Tóquio. Do Japão 6) veio para São Paulo, em 2008, quando me aposentei, e ali ficou em depósito. Chega agora 7) a  Colina, concluindo aqui sua jornada de sete etapas e dezenas de milhares de quilômetros - com certeza, mais de uma volta à terra, quem sabe duas.  Durante todo esse tempo, foi como uma admirada embaixadora da Venezuela na Embaixada ou no Consulado Geral do Brasil.



Em toda essa odisseia, únicos incidentes notáveis foram



1)          o tampo começou a murchar e desfazer-se, as espessas pranchas se separando; os pés também davam sinais de cansaço após tantos anos, séculos, sustentando seu pesado topo. Um artesão amador tentou consertar, em Montevidéu, e foi um desastre, cujas sequelas o móvel conserva até hoje;



2)          ao chegar à Austrália, os  serviços de sanidade vegetal implicaram com furos profundos que a madeira apresentava e enigmáticos rabiscos na superfície. Logo apurei que a imersão em água do mar fora usada no passado como remédio contra as infestações de insetos em madeira, os rabiscos eram de caranguejos. Mas os furos,  os fiscais não deixaram passar, apesar de serem apenas vestígios de infestações antigas.  Proibiram a entrada da mesa no país, para protegê-lo da presumida e multissecular praga do país exótico de origem. Esperneei: se não  deixam entrar, única coisa que posso fazer é por fogo! Também sensíveis às coisas belas do passado, os australianos se assustaram com a ameaça, confabularam, chamaram o Chefe e ao final me anunciaram a solução de compromisso, que prontamente aceitei: entra, mas fica de quarentena. Durante esta, o móvel seria submetido a tratamento conforme as melhores tecnologias disponíveis (os australianos entendem de madeira). Seis meses depois a mesa apareceu de volta em casa, com certificado de que já não padecia de nenhuma enfermidade, não trazia qualquer risco de disseminação de insetos indesejáveis. Junto veio a conta pelo tratamento, que paguei sem reclamar, até agradecido.



Resolvi tentar reparar a mesa claudicante aqui  em Colina, onde tenho notado a sobrevivência de artesãos competentes e dedicados. Não quero um carapina qualquer,  indelicado, daqueles que mais bem agridem sua matéria-prima do que a trabalham, amputando  pedaços com formão e serra, brutalmente, sem respeito pelo objeto em suas mãos. Preciso de um marceneiro daqueles que acariciam a madeira antes de tratá-la, sentem sua textura com as mãos, distinguem com os olhos  suas cores e matizes, com o carinho e a consideração que a natureza e os artífices do passado bem merecem.



Precisa-se de um marceneiro amoroso. Alguém conhece?



P.S. – Esta crônica também tardou em ser divulgada. A ponto de eu já ter chamado diversos marceneiros. O pé manco foi consertado, por meio de uma plástica de tecnologia recente. Mas no demais, o veredito, unânime, é sensato e terminal: deixa como está! Ninguém parece querer mexer nas mazelas veneráveis de minha mesa multicentenária.



Que assim seja. Amém!

SOBRE O AUTOR:


Renato Prado Guimarães nasceu em Colina, Estado de São Paulo.
Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad interim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.Promovido a
Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.
No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou.Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.

É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.


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