Palavras do autor (Embaixador Renato Prado Guimarães) em evento no dia 8 de maio, no Consulado
Geral do Brasil em Frankfurt (Alemanha)
[Nota:
Renato se mudou para o Brasil e expressou as palavras abaixo em uma sessão de
homenagem na véspera da sua partida. Torcemos para que seu novo lar na cidade
de Colina, SP, lhe traga vontade e inspiração]
Meus amigos,
Muito obrigado, Cézar, por suas palavras tão bondosas.
Muito obrigado por ter convidado tantos amigos para este momento aqui no
Consulado. Muito obrigado pela placa. Afinal, os únicos emplacados desta sala
eram o Manuel Backenholer e o Paulo motorista, contemplados, ambos, por merecido
agradecimento naquela plaquette ali junto ao painel do Rugendas, que eles
ajudaram a instalar. Eu não os supero em prestígio, agora, mas ao menos
empato.
Eu sempre achei elogio uma coisa equívoca, redundante.
Elogio é aquilo que você diz de alguém e que ele já acha que é, desde sempre.
Mas o César foi tão expressivo, tão veemente em suas palavras, que até me vejo
tentado a acreditar no que ele disse. Não poderia, aliás, discordar, pois seria
muito indelicado desmentir em público tão bom colega e amigo. Seria como naquela
estória do Nelson Rodrigues, do beque que corre atrás do juiz, protestando, aos
gritos: Mas foi pênalty Senhor Juiz, foi pênalty. Eu fiz o pênalty!
Temo que este momento esteja adquirindo jeito de
despedida. Quem sabe vocês estejam me despedindo, na esperança de se ver livre
de mim. Mas eu não estou me despedindo. Eu só admito dizer-lhes um até logo,
recorrendo ao clichê refrão nessas conjunturas de separação.
O poeta foi-se embora pra Pasárgada, o Caymmi foi pra
Maracangalha. Eu vou pra Colina.
Em São Paulo me perguntam: onde é que você foi encontrar
coragem para ir morar numa cidadezinha minúscula, você que viveu tantos anos em
grandes metrópoles? Minha resposta é contundente: encontrei coragem em minha
covardia. É preciso ser muito valente para enfrentar a tortura diária de morar
na Capital, São Paulo – e seus custos, na minha avaliação o dobro de Frankfurt,
a segunda cidade mais cara da Europa. A Antonia, hoteleira, não vai gostar de
saber que a diária do melhor hotel de Colina custa 40 reais. Sem ar
condicionado, claro. Com ar condicionado, é... 50 reais.
Eu sempre invejei umas
botas marrons do Hans Apostel, acho que italianas, ou quem sabe inglesas, da
Church’s. Entrei numa portinha de sapateiro na rua Sete, para consertar um tênis
de couro, vi um par parecido ao do Hans em exibição, me interessei mas o
sapateiro disse que não tinha em estoque. Podia, no entanto fazer sob medida,
para entregar em dois dias. Preço? 70 reais. Encomendei e eis aqui a maravilha,
da qual muito me orgulho. Só que depois se enganou, o danado: na hora de pagar
pediu mais do que o combinado: 80 reais! Encantado com a compra, nem discuti o
preço. No que fiz mal, pois devo ter dado a ideia na cidade de um abastado
forasteiro, que não se importa com dinheiro.
Recebi outro dia um orçamento
salgado para a pintura da casa que comprei, a ponto de haver decidido pintar eu
mesmo, a casa, com vagar e carinho. Vai ser uma advertência sutil, um tapa com
luva de pelica nos prestadores de serviço locais. Não sei é se a luva vai entrar
em minhas mãos quando eu acabar o serviço...
Voltando aos pés e às botas:
veja-as aqui, pois eu as estou calçando (não as tiro dos pés), e se admirem com
seu estilo, ao mesmo tempo roceiro autêntico e de refinamento cosmopolita,
pasmem ante a qualidade do couro e do acabamento. Por sinal, encomendei outro
par para meu enteado, o Leon, e já sugeri ao sapateiro assinar sua obra insigne
na sola, marcando espaço no mercado europeu: Fernando Paçoca, Made in Colina...
Mas não contem a respeito ao Hans Apostel, que ele vai querer comprar
também...
Ainda com relação a preços. Minha (nossa!) casa tem 469
metros quadrados de boa construção, terreno de 700, 4 quartos, sendo 2 suites,
imenso salão de estar, sala de jantar, sala de TV, piscina, sauna,
churrasqueira, aquecimento da água por painéis solares e nem sei mais o quê, e
me custou preço pelo qual não pude comprar um apartamento de quarto e sala na
Aclimação, em São Paulo. E para os padrões de Colina, o preço foi alto. Eu falo
das maravilhas de minha (nossa) casa não por gabolice tola, mas para efeito de
comparação de preços com São Paulo e como merchandising - propaganda em alento
de minha esperança de tê-los lá, comigo, um dia.
A família me pergunta, preocupada: sua saúde, quem vai
cuidar dela? Isso me preocupa, pois vou deixar de contar com a assistência
perene, solidária e salvadora da médica atenta e competentíssima que é Bettina.
Mas logo respondo: três centros médicos universitários de relevância estão
perto, Ribeirão Preto a uma hora, Rio Preto a 40 minutos, Uberaba a hora e
vinte. Campinas está a 3 horas, São Paulo a 4. Barretos, que é referência
nacional para certas especialidades, está a 10 minutos. Além disso, em Colina,
no mesmo quarteirão, em frente, moram dois excelentes médicos, o pronto-socorro
está a 100 metros, o Hospital da cidade a 150. Se isso não bastasse, a 800
metros está o Cemitério. Dá pra ir a pé.
Por sinal, durante conversa com
compatriota colinense sobre o carro que deveria comprar, para usar em Colina,
ele observou que certa marca desvalorizava muito, e depressa. Eu retorqui que
não estava pensando em valor de revenda, estava querendo um carro para sempre,
pra viver e morrer com ele. Aí ele retrucou, com graça macabra: então é melhor
você, em lugar de escolher modelo sedã, comprar logo um hatchback, daquelas
peruas com espaço apropriado atrás...
Colina tem 17 mil habitantes, muito bem cuidada, com lago
e jardins, totalmente arborizada, totalmente asfaltada e saneada, com água que
se pode beber da torneira, avenidas largas que se dão ao luxo de ter palmeiras
imperiais nas ilhas de separação. A única queixa que ouvi, com respeito ao
trânsito em Colina, é a de que as monárquicas palmeiras formam renques tão
cerrados que os motoristas têm dificuldade para ver quem vem pela outra pista...
Não tem universidade mas a Prefeitura dispõe de uma frota de ônibus para levar e
trazer diariamente seus estudantes a Ribeirão, Rio Preto, Barretos, diversas
viagens por dia, de ida e de volta. Lá nasceu e vive o escritor mais lido do
Brasil – que não sou eu, mas sim o Augusto Cury, que no Brasil bate até o Paulo
Coelho, que é mais pro público internacional.
Berço do Augusto, e meu, e também
do cavalo mangalarga paulista e do time de polo que foi o primeiro conjunto
brasileiro a conseguir bater os imbatíveis argentinos. Por tudo isso é conhecida
como a Capital Nacional do Cavalo. (Excluam-se desse “tudo isso”, claro, o
Augusto e eu, que nada temos de equino). Não, não pretendo começar a jogar polo
ou praticar hipismo. Em volta da cidade há diversos centros universitários
importantes. Quero ver se me enturmo lá e viro professor, coordenador de cursos,
palestrante, o que seja que possa render um dinheirinho.
Em algum lugar escrevi que o exílio que o diplomata mais
deve temer não é o da vida toda, longe da Pátria, a seu serviço, mas sim, ao
voltar, o exílio na própria terra, amputado de suas origens. Eu volto às
origens, volto a Colina com um sentimento deveras estranho – o sentimento de que
dela nunca saí. Isso se chama raízes... O que precede me faz ceder à tentação de
ler-lhes uns versos que tive o privilégio de encontrar poucos dias atrás:
O desterro são cidades estrangeiras que já não se parecem,
Apesar de serem iguais,
São espelhos voltados sobre si mesmos, vazios de reflexos como poças
ressecadas.
Gostaram? Então tem mais.
Em Colina aspiro a viver:
Uma tarde mormacenta (como tantas outras), E por isso mesmo única. Uma tarde pretérita,
Ancestral,
Prenhe do aroma das idades
E de frágeis lembranças de momentos não vividos.
Uma tarde de saudadesAs mais completas,As mais absolutas.Uma tarde de arrependimentos,De aguda consciência do irrecuperável,Da amarga nostalgia do que não tem mais volta.Do que não é mais possívelPor ser já muito tarde.(...)Uma tarde de silêncios, de murmúrios e de preces.Uma tarde de invocações e de presságios.Uma tarde religiosa,Contrita,Recolhida...Mas também luciferina,DionisíacaProfana.Uma tarde diabólica e divina:Uma tarde humana.
Para os que tenham me confiado a subida honra de imaginar que fui eu quem
escreveu isso aí, apresso-me em esclarecer que me falta talento para tanto - o
talento que sobra no Claudio Guimarães dos Santos, o novo Terceiro Secretário do
Consulado Geral, por cuja aquisição não posso deixar de felicitar o Cezar e
todos vocês. O autor é ele. Ele é diplomata, poeta, pintor, médico e psiquiatra
experiente. Não me perguntem por que ele resolveu entrar para o Itamaraty. Acho
que ele descobriu em nós um bom mercado, ou um bom terreno de pesquisa.
Cobaias... Ele já encontrou casa em Frankfurt, ali na Grüneburgweg, em
apartamento onde morou Heindrich Hoffmann, importante psiquiatra alemão de
princípios do Século XX, também autor de histórias para criança muito conhecidas
– justamente a especialidade de sua mulher (de Cláudio), Amanda. Do outro lado
da rua, morou Alzheimer, por quatro anos; tem placa lá... Coincidência, sinal,
presságio? Eu chamo isso de aceno do destino.
A Embaixatriz Lídia, que é de Petrolina, outro dia me
contou uma anedota de pernambucano que lembra muito Colina. O pernambucano, em
Roma, depara com uma coluna de mármore num canto da praça, e, sobre ela, um
telefone dourado e translúcido. Pergunta a um padre quê que era aquilo e o padre
responde, prestativo: É para falar com o Paraíso. O pernambucano se surpreende,
mas sempre prático pergunta: e quanto custa? O padre diz que a tarifa era cem
dólares. O pernambucano segue viagem e nas proximidades de todo “dom”, toda
catedral na Europa encontra o mesmo dispositivo – o terminal celestial. Pergunta
o preço em toda parte, mas a tarifa é única: 100 dólares. De volta ao Brasil,
chega a Colina e também ali topa, no largo da matriz, no centro do coreto, com a
coluna redentora, o telefone dourado. Vê o pároco Santana passando e pergunta o
preço, sempre prático, como bom pernambucano. O Padre responde: 25 centavos.
Surpreso, o pernambucano esbraveja: Em toda parte o custo de falar com o Paraíso
é 100 dólares, como em Colina pode ser só 25 centavos? E aí o Padre dá a
explicação definitiva: É que aqui a tarifa é local.
Colina Paraíso? A cidade se proclama “Capital Nacional do Cavalo” mas eu prefiro
outro título, que ela igualmente se dá, discretamente, mais íntimo e acolhedor:
“Cidade Carinho”.
Falei muito de Colina. Afinal, é o destino da hora e
precisava apresentá-lo a vocês, até como um aperitivo para as visitas que espero
me farão. De Frankfurt teria ainda mais a falar, esta cidade onde vivi 9 anos
essenciais de minha vida, muito mais tempo do que vivi até agora em Colina –
Frankfurt cidade agradável e amena, serena mas vital e vigorosa, acolhedora mas
sem intimidades, cujo progresso até passa despercebido, tão perene, cotidiano,
desde o passado mais remoto, que a gente até o dá por contado. Mas Frankfurt,
vocês conhecem, e melhor do que eu; Colina, não.
Não é despedida, pois. Quando eu estava em Tóquio,
Bettina e eu trocávamos visitas a cada dois meses sobre os 12.000 quilômetros
que nos separavam. Nós contamos poder restabelecer esse “commuting” de longo
curso entre Frankfurt e Colina. E para provar que não é despedida, a minha,
recorro ao testemunho do José Soares, da TAM. Aqui está minha passagem da viagem
aérea, de ida e de volta. Os céticos dirão que comprei de ida e volta porque é
mais barato que só ida. De qualquer forma, a ida está marcada para amanhã, 9 de
maio, e a volta, para... Ora, vamos deixar isso em suspenso.
Muito obrigado a meus colegas do Consulado, em particular
aqueles que vêm ainda de meu tempo, tiveram a paciência de suportar-me, a Ana
Lúcia, a Berenice, a Ruth, o Manuel, o Paulo – e a Christine, que estava sendo
contratada quando saí. Muito obrigado a meus companheiros do Centro Cultural
Brasileiro em Frankfurt, do Nexo do CCBF – o Carlos Frederico, a Susanne, a
Beth, a Clélia, a Anna Bruhn, as Vânias, por sua dedicada e competente
contribuição para fazer do Centro um modelo de divulgação cultural do Brasil no
exterior, para os locais e para os brasileiros aqui residentes, refrescando-lhes
sempre as origens irredutíveis.
Muito, muito obrigado a todos vocês, amigos de Frankfurt,
pelo evento de hoje e por sua companhia amistosa e reconfortante todo esse tempo
que passou, companhia que também prezarei, estou certo, no tempo restante que
passará.
Não é despedida, pois. Só um até-logo. Mas não posso
deixar de admitir, a bem da verdade, e da emoção, que é um até logo carregado de
saudades antecipadas.
Muito obrigado, mais uma vez, meus amigos.
Renato Prado Guimarães nasceu em Colina, Estado de São Paulo.
Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.
Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad interim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.
Promovido a Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.
No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou. Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.Para contatos, usar o endereço de e-mail rpguimar@gmail.com
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