Nas palavras ditas em Frankfurt, no Consulado Geral, dia 8 de maio (Colinenses no. 1), contei diversos episódios marcantes de minhas precursoras a Colina. Por alguma razão omiti o principal, mais saboroso – e talvez o mais significativo.
Uma noite quis rever o Cine Santa Helena, cujas matinées frequentei e onde assisti a muito filme de Tarzan e cowboy. Encontrei apenas seus vestígios, escuros, meio tenebrosos. Frustrado e entristecido, pensei em reanimar-me na sorveteria que existia ao lado, descendo a 7, onde tomei muito sorvete de massa e aqueles pirulitos de groselha que deixavam a boca vermelha que nem batom. Encontrei um Banco no lugar. Vislumbro, contudo, do outro lado da rua, uma sorveteria, simpática, embora de aspecto meio modernoso. Vou lá e descubro que o sorvete é de tipo caseiro, e em surpreendente gama de sabores.
Depois de alguma hesitação, escolho o “Sonho de Valsa” – outra reverência nostálgica aos tempos de antes. A moça empina uma bola gigantesca em cima da casquinha, e lá vou eu para uma das mesinhas na calçada, ansioso a caminho da juventude reconquistada.
Mas aí me invade um sentimento de remorso: não posso ingerir tanto açúcar, do sorvete, sem previamente compensar com uma dose potente de insulina (sou diabético). Tiro a caneta-seringa do bolso, com a mão direita e certa dificuldade, pois com a outra mão segurava o sorvete, tiro a tampa, desajeitado, mas aí a bola instável despenca e se esparrama no chão. Nem deu tempo para lamentar a perda, e pensar no que fazer, e a moça já estava na calçada, pano e escova na mão, para limpar o desastre.
Noto então, contudo, que ela vê e mira, atônita, a seringa esquisita em minha mão, agulha em riste, desembainhada. Coro de vergonha e esfrio de preocupação: a caneta injetora é coisa nova, europeia, ela não pode saber que é instrumento médico e vai pensar que é droga! Heroína em Colina! Claro que nem sabe o quê e para quê é insulina. Vai se assustar e chamar o delegado! Cadeia, explicações, talvez advogados, investigações médico-legais. Que começo infeliz, constrangedor, para minha volta à cidade-berço! Angustiado, e muito encabulado, tento justificar, sem muita convicção quanto aos resultados: “É para injetar insulina, tenho diabetes.” E aí vem uma reação inesperada: nem medo, nem acusação, nem questionamento, nem apelo à polícia, mas uma pergunta polida diante de minha patente atrapalhação: ”O Senhor quer que a gente aplique?”
Gesto de espontânea solidariedade, revelador de uma hospitalidade genuína e essencial, isenta de reservas e desconfianças.
Coisa de Colina!
Claro que não aceitei o gentil socorro terapêutico. Pedi foi outro sorvete.
Sonho de Valsa, claro.
SOBRE O AUTOR:
Começou a carreira profissional como jornalista, nas “Folhas” e no “O Estado de S. Paulo”; paralelamente, formou-se na Faculdade de Direito da USP, no Largo de São Francisco.Diplomata desde 1963, foi Secretário de Embaixada em Bruxelas e Bogotá, Chefe do Escritório Comercial do Brasil nos EUA, Cônsul Geral ad interim em Nova York, Ministro-Conselheiro na Embaixada em Washington e Encarregado de Negócios junto aos EUA, ad ínterim.Promovido a
Embaixador em 1987, exerceu aquela função na Venezuela, no Uruguai e na Austrália (cumulativamente, também na Nova Zelândia e em Papua-Nova Guiné). Foi igualmente Cônsul-Geral do Brasil em Frankfurt, na Alemanha, e em Tóquio, no Japão.
No Brasil, foi Chefe da Divisão de Programas de Promoção Comercial, porta-voz do Itamaraty na gestão Olavo Setúbal e Chefe do Gabinete do Ministro Abreu Sodré; fora de Brasília, foi Chefe do Escritório do Ministério das Relações Exteriores em São Paulo – ERESP, que instalou.Aposentou-se em abril de 2.008. Reside atualmente em Colina, sua terra natal, interior de São Paulo, Brasil.
É o autor de “Crônicas do Inesperado”, lançado em outubro de 2.009.
Para contatos, usar o endereço de e-mail rpguimar@gmail.com
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O nome do cinema era "Cine Santa Helena"? O senhor conhece se há alguma história em particular que levou a escolha deste nome? Parabéns pelo blog!
ResponderExcluirAdorei o texto, até parece historia em quadrinhos... de tão detalhadas cenas. Parabéns conterrâneo Emb. Renato P. Guimarães, mais vale um gosto do que insulina no bolso...
ResponderExcluirQue bom que não acabou esse lado simpático e solidário dos que permanecem nessa cidade carinho.
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